domingo, 30 de abril de 2017

Notas sobre Olavo de Carvalho - Parte I

A primeira vez que me atentei de fato para o nome de Olavo foi após uma das minhas entrevistas de pesquisa de campo do meu doutorado. Eu entrevistava dois coordenadores de um movimento de direita daqui de Fortaleza, Ceará. Senti neles uma ponta de ironia ao afirmarem, nas entrelinhas, que eu seria mais uma das idiotas úteis, no caso, do feminismo. Isso pois, segundo a percepção deles, eu não seria de fato uma feminista apesar de me afirmar como tal. Seria apenas uma massa de manobra do feminismo, uma “idiota útil do feminismo”. Ora, estava eu ali grávida de poucos meses, casada e de aliança no dedo, com vestido longo florido, brincos grades, cabelos estirados, batom, ué, bem feminina. Uma imagem que choca para quem fabrica a ideia de que uma feminista não pode ser também feminina. Em postagem de uma das coordenadoras do movimento no facebook, ela afirmava no mesmo dia da entrevista: as feministas estão abismadas como um conjunto de mulheres independentes que insistem em não se afirmarem feministas. E que estas eram as tais das idiotas úteis. Sim, a tal da indireta facebookiana que respinga em muitos, mas acerta o alvo. Lembro-me que perguntei qual teria sido o primeiro contato deles com o feminismo, qual seria a primeira leitura feminista para que eles pudessem formular essas opiniões sobre o feminismo. Nenhuma foi a resposta. Perguntaram a mim. Ora, ora, estudo feminismo! De Simone de Beauvoir à Sulamith Firestone. 

O que me impressiona não é nem que mulheres independentes não se afirmem como feministas. O que me assusta (incomoda?) é que homens e mulheres nunca tenham lido um texto feminista para se afirmarem como antifeministas; serem movidos a um ódio contra feministas que é alimentado apenas pelas redes sociais, memes de facebook, textinhos rápidos de links duvidosos de internet; imagens recortadas de seus contextos; ações do movimento que não são consenso dentro do próprio movimento; movidos por tratar o feminismo como algo homogêneo e consensual; ou textos de homens furiosos com o feminismo. A minha inquietação também é entender por que o feminismo tem gerado tanta repulsa nessas pessoas. Por que ideias como marxismo, socialismo, comunismo, direitos LGBTs e o próprio feminismo são alvo de tantas resistências coletivas?

Desde então, Olavo não saiu da minha cabeça. Assim como a esquerda teria seus supostos intelectuais, sua “inteligentzia” ou seus gurus, como nos cansam de dizer, assim também a direita fabrica seus intelectuais e seus minions dispostos a repetir certas asneiras sem questioná-los. Isso porque de um lado e de outro temos pessoas ávidas por líderes, pais todo-absolutos a quem possam obedecer cegamente.

Não é necessário ter apenas estômago para ler Olavo, mas rins para filtrá-lo e intestino para excretá-lo antes que nos cause qualquer infecção generalizada. Até gosto de um texto mais corrosivo. Não à toa gosto de Daphne Patai, Paul Beatriz Preciado, Virginie Despentes, apesar de não concordar teoricamente em muitos aspectos. Então busquei Olavo desarmada, mas cuidadosa.

No texto “Breve história do machismo”, do livro “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota” (indicado, inclusive, pelos representantes do movimento que falei acima), ele vomita sua aversão ao feminismo, seu machismo, sua misoginia de forma crua. Num texto cheio de ironias, a intenção é afirmar que o mundo se fez com o trabalho duro dos homens enquanto as frívolas mulheres ficaram com a parte mais fraca, menos importante, menos trabalhosa do mundo. 

Em curtíssimos parágrafos ele vai da era de neanderthal até o mundo contemporâneo, o que já é de se estranhar para um leitor mais cuidadoso. Foram os homens que domaram as feras na era primeva do mundo, plantaram e colheram, caçavam, foram para a guerra, estiveram em cruzadas, desbravaram os revoltos mares nas expedições marítimas, enfrentaram os nativos. A história vista sob um ângulo totalmente superficial. A história que clama por heróis, líderes. Enfim, o trabalho pesado da história foi deles. Às mulheres couberam a parte frívola do mundo, como ler livrinhos fúteis. Mas, que mulher? Que mulheres liam? Quem eram as que não liam? Por que umas liam e outras não? Liam aonde? No interior de suas alcovas ou nas grandes bibliotecas das universidades? Tinham acesso à universidade? Se não, por que não?

Eram eles que estavam à frente das cruzadas? Mas, por que as cruzadas se faziam necessárias? Qual foi seu real motor político? Quem intelectualmente estava à frente do empreendimento cruzadístico? Quem foram as pessoas mortas na Inquisição? Por que torturavam, queimavam pessoas? Quem mais foi queimado?

Se meu trabalho doméstico é tão frívolo assim, por que todo o clamor para que eu o faça? Para que eu o cumpra? Para que eu retorne ao lar? Para que eu me dedique aos meus filhos, meu marido e minha casa?

O machismo, então, seria uma criação? O machismo de que se fala no texto, na verdade, seria a bravura do homem que enfrentou o mundo. Feministas teriam invertido o sentido do machismo. Foi o machismo que criou e desenvolveu o mundo.

Diante disso tudo me pergunto como mulheres conseguem digerir um texto desse. Como não enxergam? Que ferramentas poderíamos fazê-las enxergar? O que fazer para mostrar que não é questão apenas de força física que explicam as diferenças no mundo entre os sexos? A questão é: por que mulheres são vistas com a função “inútil” da história? E por que a “inutilidade e frivolice” do trabalho feminino é também exaltada como a virtude de ser mulher que deveríamos todas seguir? Por que as mesmas mulheres que defendem a exaltação desse papel da mulher não se revoltam (ou ao menos se inquietam) quando tomam seu trabalho doméstico como frívolo? Como teria sido possível o trabalho fora do lar se o trabalho do lar não tivesse quem o fizesse?

A questão não é troca de lugar, de tomada de posição, de quem tem mais força física, se homens ou mulheres. A questão não é dividir o mundo ou trocas as posições de homens e mulheres. As questões que devem ser colocadas são: que ideias explicam que mulheres fossem chamadas ao trabalho fora do lar durante os períodos de guerra? Que ideologia é essa que as chama novamente ao lar? Já não são mais necessárias? Que mulheres foram chamadas ao mercado de trabalho no período entreguerras? E aquelas mulheres que há muito trabalhavam, como as escravas? Por que incomoda estudar sobre a mulher ou buscar lhe viabilizar mais direitos? Por que incomoda que mulheres estudem e trabalhem? Por que mulheres saem em defesa de quem parece ser seu próprio algoz?

Mais uma vez me deparo com a paranoia do “mito da democracia de gênero” sendo estilhaçado no mundo: tudo estava bem até as feministas chatas, mimizentas, chegarem e mudarem o sentido das coisas. Mexeram onde não deveriam. Colocaram a mão no vespeiro.

Tudo caminhava bem até virem os historiadores e desvirtuarem a história da ditadura militar, pois a história que se conta não é a real. Tudo caminhava bem até virem as feministas e darem um novo sentido ao machismo nosso de cada dia. Tudo estava bem até sociólogos fazerem todas essas perguntas indesejadas. As ciências humanas tornaram-se alvos. Um metier de fazer ciências humanas tornou-se alvo.


O mundo parece estar dividido entre direita e esquerda, de modo que apenas o conceito de classes sociais já não da mesmo conta de explicar a realidade contemporânea por si só. Estamos entrelaçados pelas noções de raça, etnia, classe, identidade de gênero, orientação sexual e política. O problema é que as pessoas são mais complexas do que suspeitam nossas visões dicotômicas entre um mundo movido apenas entre dois lados opostos. As pessoas são mais leves fora das telas do computador, fora do tic-tac dos dedos nervosos batendo no teclado e criando posições políticas. São mais complexas do que uma simples divisão entre direita e esquerda. É possível se posicionar e é necessário ter uma posição, mas a minha posição não deve anular o outro como indivíduo. Discordar nunca foi anular. Discordar nunca foi anular a possibilidade de existência do outro. Discordar não deveria ser um exercício de se fechar diante do outro, mas de abrir-se para ouvir o outro. Deveria ser um exercício de diálogo, de sínteses possíveis, de convivências possíveis entre diversos. É nesse mundo que aposto.