A
primeira vez que me atentei de fato para o nome de Olavo foi após uma das
minhas entrevistas de pesquisa de campo do meu doutorado. Eu entrevistava dois
coordenadores de um movimento de direita daqui de Fortaleza, Ceará. Senti neles
uma ponta de ironia ao afirmarem, nas entrelinhas, que eu seria mais uma das
idiotas úteis, no caso, do feminismo. Isso pois, segundo a percepção deles, eu não
seria de fato uma feminista apesar de me afirmar como tal. Seria apenas uma
massa de manobra do feminismo, uma “idiota útil do feminismo”. Ora, estava eu
ali grávida de poucos meses, casada e de aliança no dedo, com vestido longo
florido, brincos grades, cabelos estirados, batom, ué, bem feminina. Uma imagem
que choca para quem fabrica a ideia de que uma feminista não pode ser também
feminina. Em postagem de uma das coordenadoras do movimento no facebook, ela
afirmava no mesmo dia da entrevista: as feministas estão abismadas como um
conjunto de mulheres independentes que insistem em não se afirmarem feministas.
E que estas eram as tais das idiotas úteis. Sim, a tal da indireta
facebookiana que respinga em muitos, mas acerta o alvo. Lembro-me que
perguntei qual teria sido o primeiro contato deles com o feminismo, qual seria
a primeira leitura feminista para que eles pudessem formular essas opiniões
sobre o feminismo. Nenhuma foi a resposta. Perguntaram a mim. Ora, ora, estudo
feminismo! De Simone de Beauvoir à Sulamith Firestone.
O que me impressiona não
é nem que mulheres independentes não se afirmem como feministas. O que me
assusta (incomoda?) é que homens e mulheres nunca tenham lido um texto
feminista para se afirmarem como antifeministas; serem movidos a um ódio contra
feministas que é alimentado apenas pelas redes sociais, memes de facebook,
textinhos rápidos de links duvidosos de internet; imagens recortadas de seus
contextos; ações do movimento que não são consenso dentro do próprio movimento;
movidos por tratar o feminismo como algo homogêneo e consensual; ou textos de homens
furiosos com o feminismo. A minha inquietação também é entender por que o
feminismo tem gerado tanta repulsa nessas pessoas. Por que ideias como
marxismo, socialismo, comunismo, direitos LGBTs e o próprio feminismo são alvo
de tantas resistências coletivas?
Desde então,
Olavo não saiu da minha cabeça. Assim como a esquerda teria seus supostos
intelectuais, sua “inteligentzia” ou seus gurus, como nos cansam de dizer, assim também a direita fabrica
seus intelectuais e seus minions dispostos a repetir certas asneiras sem
questioná-los. Isso porque de um lado e de outro temos pessoas ávidas por
líderes, pais todo-absolutos a quem possam obedecer cegamente.
Não é necessário
ter apenas estômago para ler Olavo, mas rins para filtrá-lo e intestino para
excretá-lo antes que nos cause qualquer infecção generalizada. Até gosto de um
texto mais corrosivo. Não à toa gosto de Daphne Patai, Paul Beatriz Preciado,
Virginie Despentes, apesar de não concordar teoricamente em muitos aspectos. Então
busquei Olavo desarmada, mas cuidadosa.
No
texto “Breve história do machismo”, do livro “O mínimo que você precisa saber
para não ser um idiota” (indicado, inclusive, pelos representantes do movimento
que falei acima), ele vomita sua aversão ao feminismo, seu machismo, sua
misoginia de forma crua. Num texto cheio de ironias, a intenção é afirmar que o
mundo se fez com o trabalho duro dos homens enquanto as frívolas mulheres
ficaram com a parte mais fraca, menos importante, menos trabalhosa do mundo.
Em
curtíssimos parágrafos ele vai da era de neanderthal até o mundo contemporâneo,
o que já é de se estranhar para um leitor mais cuidadoso. Foram os homens que
domaram as feras na era primeva do mundo, plantaram e colheram, caçavam, foram
para a guerra, estiveram em cruzadas, desbravaram os revoltos mares nas
expedições marítimas, enfrentaram os nativos. A história vista sob um ângulo
totalmente superficial. A história que clama por heróis, líderes. Enfim, o trabalho
pesado da história foi deles. Às mulheres couberam a parte frívola do mundo,
como ler livrinhos fúteis. Mas, que mulher? Que mulheres liam? Quem eram as que
não liam? Por que umas liam e outras não? Liam aonde? No interior de suas
alcovas ou nas grandes bibliotecas das universidades? Tinham acesso à
universidade? Se não, por que não?
Eram eles
que estavam à frente das cruzadas? Mas, por que as cruzadas se faziam
necessárias? Qual foi seu real motor político? Quem intelectualmente estava à
frente do empreendimento cruzadístico? Quem foram as pessoas mortas na
Inquisição? Por que torturavam, queimavam pessoas? Quem mais foi queimado?
Se meu
trabalho doméstico é tão frívolo assim, por que todo o clamor para que eu o
faça? Para que eu o cumpra? Para que eu retorne ao lar? Para que eu me dedique
aos meus filhos, meu marido e minha casa?
O machismo,
então, seria uma criação? O machismo de que se fala no texto, na verdade, seria
a bravura do homem que enfrentou o mundo. Feministas teriam invertido o sentido
do machismo. Foi o machismo que criou e desenvolveu o mundo.
Diante
disso tudo me pergunto como mulheres conseguem digerir um texto desse. Como não
enxergam? Que ferramentas poderíamos fazê-las enxergar? O que fazer para
mostrar que não é questão apenas de força física que explicam as diferenças no
mundo entre os sexos? A questão é: por que mulheres são vistas com a função “inútil”
da história? E por que a “inutilidade e frivolice” do trabalho feminino é
também exaltada como a virtude de ser mulher que deveríamos todas seguir? Por que
as mesmas mulheres que defendem a exaltação desse papel da mulher não se
revoltam (ou ao menos se inquietam) quando tomam seu trabalho doméstico como
frívolo? Como teria sido possível o trabalho fora do lar se o trabalho do lar não
tivesse quem o fizesse?
A
questão não é troca de lugar, de tomada de posição, de quem tem mais força
física, se homens ou mulheres. A questão não é dividir o mundo ou trocas as posições de homens e mulheres. As questões que devem ser colocadas são: que
ideias explicam que mulheres fossem chamadas ao trabalho fora do lar durante os
períodos de guerra? Que ideologia é essa que as chama novamente ao lar? Já não são
mais necessárias? Que mulheres foram chamadas ao mercado de trabalho no período
entreguerras? E aquelas mulheres que há muito trabalhavam, como as escravas? Por
que incomoda estudar sobre a mulher ou buscar lhe viabilizar mais direitos? Por
que incomoda que mulheres estudem e trabalhem? Por que mulheres saem em defesa
de quem parece ser seu próprio algoz?
Mais uma
vez me deparo com a paranoia do “mito da democracia de gênero” sendo
estilhaçado no mundo: tudo estava bem até as feministas chatas, mimizentas,
chegarem e mudarem o sentido das coisas. Mexeram onde não deveriam. Colocaram a
mão no vespeiro.
Tudo caminhava
bem até virem os historiadores e desvirtuarem a história da ditadura militar, pois a história que se conta não é a real. Tudo
caminhava bem até virem as feministas e darem um novo sentido ao machismo nosso
de cada dia. Tudo estava bem até sociólogos fazerem todas essas perguntas
indesejadas. As ciências humanas tornaram-se alvos. Um metier de fazer ciências
humanas tornou-se alvo.
O
mundo parece estar dividido entre direita e esquerda, de modo que apenas o
conceito de classes sociais já não da mesmo conta de explicar a realidade
contemporânea por si só. Estamos entrelaçados pelas noções de raça, etnia,
classe, identidade de gênero, orientação sexual e política. O problema é que as
pessoas são mais complexas do que suspeitam nossas visões dicotômicas entre um
mundo movido apenas entre dois lados opostos. As pessoas são mais leves fora
das telas do computador, fora do tic-tac dos dedos nervosos batendo no teclado
e criando posições políticas. São mais complexas do que uma simples divisão entre
direita e esquerda. É possível se posicionar e é necessário ter uma posição,
mas a minha posição não deve anular o outro como indivíduo. Discordar nunca foi
anular. Discordar nunca foi anular a possibilidade de existência do outro. Discordar
não deveria ser um exercício de se fechar diante do outro, mas de abrir-se para
ouvir o outro. Deveria ser um exercício de diálogo, de sínteses possíveis, de
convivências possíveis entre diversos. É nesse mundo que aposto.