quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O polarismo no Brasil: uma versão

Às vezes é bom sairmos dos nossos gabinetes de estudo e das tensões do mundo virtual e ver o que está acontecendo lá fora. É importante nos oxigenarmos (ou mesmo intoxicarmos) com o que está acontecendo no mundo. Depois voltarmos para nossos planos individuais e confrontarmos nossas subjetividades com as tensões de lá: como elas acontecem dentro de mim? Como esses outros lá de fora fazem guerras ou festas em mim?

Hoje o dia me serviu para mostrar como as pessoas, até mesmo aquelas que estão numa posição tida como mais crítica e mais objetiva de enxergar a realidade, buscam líderes aos quais possam idolatrar. As pessoas não estão, na maioria das vezes, em busca de um debate no sentido profundo da palavra, discordar pela palavra e não pelo grito. Elas estão em busca de confirmar suas teses já formadas e fechadas. A religião e Deus foram destronados da universidade, mas elegemos outros que não tem esses nomes, mas os tratamos como tais. O caminho entre a afeição intelectual e emocional é curto e se misturam. Não vejo problema nisso até que a afeição emocional torne-se uma paixão cega e incapaz de confrontar o outro. Assim como existem pessoas que tem o ego amaciado e gostam de pedestal. Eu, particularmente, nunca quero ser colocada num pedestal, pois não nasci para ser adorada. Como diz Roxane Gay, no livro Má feminista (2016), “De modo geral, faço merda. Considere-me já como criticada.”. 

Eu vejo no Brasil e no mundo dois projetos de sociedade, dois projetos de mundo caminhando e em disputa. Não estamos vivendo um pluralismo político nos termos da Constituição, estamos vivendo um binarismo mesmo.

Precisamos entender que discurso acadêmico não é tudo. Ciência não é tudo. Nem tudo passa pelo meu currículo extenso, pela ciência ou pela universidade. Há uma vida para além disso e a vida na universidade terá reflexos sociais não só nos nossos cotidianos, mas no de todos. Ciência não é verdade absoluta. Discursos científicos não tem argumentos de autoridade sobre tudo e todos. A ciência não deve ser usada como cassetete sobre os outros. Verdades podem ser questionadas.

O projeto escola sem partido me assusta, mas precisamos notar também que a dura realidade do ensino já é uma censura escancarada. Os professores estão sujeitos todos os dias nas salas de aula pela censura dos celulares, tendo vozes gravadas sem autorização, recortadas, compartilhadas, publicadas; tendo as falas deturpadas; tendo carros arranhados por alunos que recebem notas baixas; sendo expostos em redes sociais; sendo caluniados e difamados fora de sala; sendo pressionados a dar notas para os alunos que não estudam e se sentem injustiçados por tirarem notas baixas; pelos alunos que não se responsabilizam pelo baixo rendimento acadêmico.

Os professores também são censurados em redes sociais nas quais nos encaixam nesses polarismos entre esquerda e direita, ainda que alguns não queiram ser encaixados neles. Nossas redes sociais viraram janelas das nossas vidas profissionais. Sou uma boa ou má professora a partir do que posto no facebook. As linhas são tênues entre vida particular e profissional. A influência que antes era exercida apenas em sala de aula foi ampliada para nossas vidas pessoais.

O mundo e cada pessoa é bem mais complexa do que o “ser contra ou a favor”, “estar de um lado ou de outro”. Há muitas ponderações para além disso! Estamos de tal modo imersos num polarismo político no Brasil que estar num ambiente com pessoas com posições diferentes é impossível. A minha questão é: movemos as mesmas forças e os mesmos gritos a esses outros quando eles são nossos pais? Nossos irmãos? Nossos amigos? Sim, porque cada um de nós vive a própria alteridade dentro de nossas casas. Cada um de nós lida com o oposto no nosso plano microssocial. Todos os dias somos confrontados com o que é diferente ou mesmo oposto. Parece que a vida está exigindo cada vez mais isso de nós brasileiros: confronte sua alteridade.

Eu me preocupo com a onda conservadora no mundo, mas me preocupo também com a intolerância disfarçada de democracia. As duas me assustam.  


O exercício de deparar-se com a alteridade do “estar com”, “falar com” o oposto, tornou-se impossível. E para onde vão esses outros que são vaiados e saem dos auditórios sobre frases de efeito? Para onde vão esses que negamos a oportunidade de fala? O que fazem a partir dali? Que decisões políticas tomam a partir dali? Com que posições vão? Que imagens ficam das universidades? Que tipo de atitude estamos alimentando neles? Que tipo de divisões estamos a fomentar mais ainda? Estamos mandando não passar, mas para onde, meus caros? Fora, para onde? O não lugar não existe. Esses outros que negamos serão sempre a companhia desagradável que vocês terão que conviver. Diante dessa possibilidade, que posturas novas poderíamos adotar? 

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Sou do coletivo das más feministas

A minha posição de fala é de uma feminista branca acadêmica, que milita na escrita e no cotidiano. Quando falo em cotidiano, falo nos embates do dia a dia, na relação com meu marido, nas conversas de família e na sala de aula. Sou uma feminista em processo de desconstrução de preconceitos, de machismos, que não nasceu pronta e que nunca vai estar porque a vida é uma construção. Sou uma feminista que não aceita a designação de cisgênero, pois não preciso de mais uma classificação criada por outros grupos para me enclausurar.

Ouço e leio muitas feministas sugerirem como uma feminista deve ser: devem falar a partir de coletivos feministas, porque é impossível um feminismo solitário, que se faz sozinha. Sinto que recaem hierarquias entre quem faz feminismos na Academia, na escrita, na sala de aula e na internet, como se estes fossem menores em relação aos de rua.


Portanto, minha posição social é de uma má feminista: aquelas feministas que não querem abandonar sua fé, que tentam ser pessoas melhores com a Bíblia, as cristãs; que não procuram o quantum de feminismo na outra, que não tentam criar hierarquias entre nós ou barreiras, que não confeccionam a carteirinha de feminista e ficam tentando ver quem pode ter a credencial para entrar ou não. Sou das feministas que não problematizam tudo porque isso me esgota e eu também preciso viver; que ouvem Beyoncé, Britney Spears, Rihana e se sentem mais empoderadas com isso. Sou daquelas que aproveitam as rebarbas do feminismo apropriado pelo mercado: nas maquiagens, nas músicas, nos filmes. Sou heterossexual, casada com um profissional da segurança pública, com ideias bem diferentes das minhas em alguns aspectos; sou uma feminista que não tem um cotidiano organizadinho como outras manas dizem ter. Enfim, sou do coletivo das feministas reais, falhas, humanas e não daquelas inventadas. 

Ser a professora "mulherzinha"

Desde pequena eu gostava da cor rosa. Quando adulta, isso não mudou. Hoje meu uso da cor é consciente de que não é de mulher, porque cor não tem sexo.



Quando entrei na docência, percebi que muitas alunas disputavam comigo, certas vezes sem saber que estavam disputando. A disputa aparecia na forma de uma antipatia gratuita, nos risinhos entre elas, no incomodo claro de ter uma professora que “tinha cara de aluna” e não “de professora”, como muitas vezes ouvi; nas conversas insistentes durante as aulas, nas batidas fortes na porta, nas fofocas maldosas, nas piadas que eu fingia não ouvir, nos comentários desrespeitosos, no assédio. Não as culpo, pois somos educadas a concorrermos entre nós desde criança. Aprendemos isso nas novelas, nos filmes, nas músicas. É cultural, endêmico. A menina que disputa para ser a mais popular, a esposa que briga com a amante, a namorada que briga com a garota que dá em cima do boy e assim o patriarcado se mantêm, alimentado pela nossa concorrência.



A “tia” faz parte de um universo de escola primária e ela é representada como a moça boazinha, meiga, maternal. Incomum é professora no ensino superior. A sociedade não espera e nem está preparada para encontrar uma mulher na política, na direção de um ônibus, na construção civil e na docência no ensino superior.


Uma das minhas interlocutoras de pesquisa me ensinou algo interessante. Ela disse, a partir de experiência própria, que é difícil ser a mulherzinha em espaços de militância política, nos movimentos sociais, na Academia, em partidos políticos. Você precisaria incorporar elementos que remetem à masculinidade para ser aceita, respeitada (por homens e mulheres): racionalidade, tom de voz por vezes autoritário, falar mais alto que os outros. Preferi pegar o caminho inverso para insistir na ideia de que sim, é possível uma “mulherzinha” nesses espaços. Então, antes era só uma questão de gosto, hoje é uma questão política também, uma política inscrita no meu corpo.




Hoje meu uso da cor rosa é político. Eu me monto com a cor rosa, sapatos de plástico, maquiagens, batons, laços no cabelo. Espera-se de um professor que ele seja homem, mais velho, estritamente racional e distante dos alunos. De mim podem esperar uma professora com cara de menina (porque isso, por mais que eu tente, não posso mudar), meiga (porque jeito também é difícil de mudar e eu prefiro a meiguice do que a dureza de personalidade), sorrisos soltos, gentilezas, uma mulher que usa pastas de bolinhas. Insisto: uma mulherzinha também pode ocupar a sala de aula, a docência, a Academia e a militância. É possível exercer autoridade e respeito em cima do salto alto cor de rosa choque. Afinal, autoridade é bem diferente de autoritarismo.