terça-feira, 26 de julho de 2016

A objetividade científica feminista

Lembro do meu período de faculdade e das disciplinas de metodologia e pesquisa. Aprendi sobre objetividade científica como aquele distanciamento necessário entre pesquisador (pensado sempre no masculino) e objeto (também pensado no masculino). Reproduzi esse mesmo discurso com meus alunos de pesquisa quando professora. Mesmo a nível de doutorado, continuei aprendendo sobre objetividade como distanciamento. A ciência estaria ancorada na razão e não na emoção ou na subjetividade. A ciência seria um discurso de verdade, produziria verdades sobre o mundo e são as verdades mais certas em comparação a outros tipos de conhecimento, especialmente o religioso e o de senso comum. Aprendi que estar apaixonado demais pelo tema é perigoso e por vezes até errôneo. Aprendi a armar trincheiras com quem entrevistava, pois poderia ser capturado pelo discurso desse outro, ser-lhe uma advogada de defesa e não uma cientista ou pesquisadora do assunto. Aprendi apenas na pós-graduação que as relações de pesquisa também são relações sociais, mas no momento das entrevistas o conhecimento que sobressaía era tratar mesmo esse outro da pesquisa como um instrumento para os meus fins, pois a relação social estava restrita ao momento da entrevista e mediada por gravadores (muitas das vezes logo nos primeiros ou segundos encontros) e roteiros de entrevista impressos com perguntas que direcionariam a sua fala. A partir dali aquele indivíduo estava inteiramente esquecido. Tal como o homem que não pode estar apaixonado demais por uma mulher de modo a comprometer sua vida pública, nós pesquisadores também não poderíamos estar apaixonados em demasia por nossos "objetos". A relação de poder está muito clara aí: eu sou o lugar ativo, associado ao masculino, e esse outro é o lugar objeto, passivo, manipulável, usado. Percebi outra coisa perversa, que eu exercia sobre os discursos que encontrava no campo de pesquisa um poder, sobre o que era conhecimento científico (o meu), crítico (o meu), objetivo (o meu) e o conhecimento de senso comum (do outro), acrítico (do outro), subjetivo e emotivo (do outro). A própria forma como dispunha e fazia com que os alunos dispusessem seus trabalhos de conclusão de curso exercia esse poder: o conhecimento teórico como o carro chefe do conhecimento do campo, que vinha por último. No entanto, esses outros não eram objetos passivos, pois certas vezes eram eles a me fazerem de objeto. A relação de poder era, na verdade, circular. Mais: eu não poderia voltar meu conhecimento para esse outro porque sentia vergonha do que havia produzido sobre esses outros nessa estrutura de poder. Como falar para homens que respondiam à Lei Maria da Penha que seus discursos eram machistas e misóginos? Como voltar esse conhecimento? Percebi que estávamos muito mais preocupados em impor discursos e argumentos de autoridade do que deixar que esses outros falassem como as coisas funcionam para eles.
Enfim, percebi, após muitas disciplinas de pesquisa e orientações, que como professores fazemos um desserviço aos nossos alunos em muitos aspectos. Primeiro, os autores que utilizamos. São, senão todos, a maior parte deles, homens. O que fazer não é apenas trocar a posição: adotar autoras mulheres ao invés de autores homens. É adotar também autoras que vem problematizando a ciência: epistemólogas feministas que tem criticado essa noção de objetividade que mais nos aprisiona do que nos liberta. Segundo, quando não questionamos de onde nós falamos, ao não percebermos que nossos discursos são posicionados. Você fala a partir de onde? Com quem? Por que? O que estou falando por trás do que quero dizer? Quais seriam os interesses imersos na minha problematização? Criamos uma falsa aura de ilusão ao acharmos que os temas de pesquisa que nossos alunos (e os nossos) escolhem não partem de suas vivências pessoais. A delimitação do "objeto" é recortada a partir da vivência acadêmica quando, na verdade, se escavarmos bem as profundezas da subjetividade, encontraremos elementos biográficos que explicam profundamente as escolhas por temas de pesquisa. A menina que fala de violência doméstica muitas vezes viu cenas de violência do pai contra a mãe ou mesmo vivenciou, para citarmos um dos muitos exemplos possíveis. Terceiro, meu olhar não está acima do real, ele é posicionado. Mais do que nunca nossas sociedades nos mostram como o olhar nunca é neutro, é sempre parcial e tem um poder que lhe está embutido. O que a câmera pretende quando filma ou fotografa? Quarto, abandonarmos a ideia de um sujeito do conhecimento sempre pensado no masculino, pelo motivo óbvio: mulheres também fazem ciência. Quinto, deixarmos de pensar também a ciência a partir de características atribuídas ao masculino, como "objetividade" (falemos, então, numa objetividade posicionada), distanciamento (falemos de aproximações não inocentes). Enfim, precisamos urgentemente aprender e ensinar novas formas de fazer ciência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário